[Se você caiu nesse texto de paraquedas e quiser conhecer um pouco do porquê desses escritos, leia esse texto de boas vindas]
Quando pesquiso pra escrever sobre determinado assunto, sempre busco narrativas de pessoas que expliquem ou explicitem algo que quero explicar. Acho muito maçante ler textos históricos que só explicam sem evocar personagens, mesmo que sejam totalmente desconhecidos do leitor.
No meio da minha pesquisa sobre os primeiros cafés e cafeterias do Brasil trombei com a história desse italiano chamado Antonio Francioni, que vou começar pelo fim.
O ano era 1885. Na primeira página do jornal Diário de Notícias de 1885 encontrei a nota de falecimento de Francioni. Uma pessoa que assinava pelo pseudônimo ELOY, O HERÓI tinha algumas coisas a dizer sobre o nosso italiano.
Quem ha tres mezes a qualquer hora, passasse pelo café do Globo, e olhasse para o interior do estabelecimento, veria sentado a uma mesa, jogando invariavelmente um uma interminavel partida de dominó, um velho, muito velhinho, octogenario: era o Francioni.
Francioni parecia ser um personagem extremamente conhecido dos leitores do jornal, ao menos os mais velhos. Dizia o autor que esse senhorzinho de 88 anos tinha nascido na comuna Ancona em 1797 e chegou ao Rio de Janeiro com vinte anos, por volta de 1817.
Aqui algumas notas já valem ser mencionadas: pouco depois da abertura dos portos às nações amigas por D. João VI, diversos imigrantes buscaram o Rio de Janeiro — então não só capital do Brasil mas também do reino Português — fato que começou a mudar a cara daquela cidade, já bastante mudada com a chegada da família real em 1808.
Foram muitos os imigrantes que vieram com noções diversas dos portugueses de tipos de comércios, formas de preparo de comidas, assim como o consumo de bebidas como o próprio café, algo ainda pouco bebido por esses lados e tinha como mais ávidos consumidores os imigrantes europeus.
Dizia o autor da nota que Francioni quando aqui chegou esteve ocupado inicialmente em uma padaria e, mais tarde, estabeleceu alguns comércios do mesmo tipo por conta própria em Icaraí e na Ponta do Caju. Por volta de 1839, ele teria aberto um Hotel na rua Direita, n. 7. Naquele sobrado, além da hospedaria/hotel onde acolhia tanto nacionais que vinham de várias partes do Brasil como estrangeiros, ele teve a ideia de abrir um bilhar, café-botequim e confeitaria na área comum localizada no térreo.
Provavelmente nosso autor pecou um pouco nas datas (o que é normal, ele deve ter checado coisas com pessoas da época que conheceram o italiano), pois em 1837 já era possível localizar a abertura uma nota no Jornal do Comércio onde Francioni mandava anunciar que:
[…] achou conveniente ajuntar ao seu estabelecimento hum elegante café, no qual achar-se-há constantemente das 6 horas da manhã em diante, bons almoços de café com leite e pão quente, assim como os almoços de garfos, como sempre.
Pra quem não conhece o Rio de Janeiro, vou dar umas direções. A rua Direita é a atual Primeiro de Março, rua essa que desemboca exatamente na famosa Praça XV, local de onde saem as barcas pra Niterói. Nessa mesma praça é onde ainda hoje fica (e na época já ficava) o Paço Imperial. Sim, aquele onde os reis D. João e D. Pedros davam sessões de audiência e os famosos “beijão-mão”.
Essa praça ao longo de toda a década de 1830 viu nascer vários cafés, todos administrados por imigrantes e que, principalmente, tinham como clientela estrangeiros recém-chegados e marinheiros de passagem, visto a proximidade com o embarque e desembarque na praia e doca que (na época) se chamava de D. Manoel. Ali surgiram vários estabelecimentos parecidos, como o dos franceses Geant Neuville e Louis Pharoux. Esse último se tornou tão famoso que seu ponto, bem em frente ao porto, recebeu seu nome.
Mas voltemos pro nosso velhinho italiano. O autor da nota dizia que Francioni era mestre na arte de preparar acepipes e petisqueiras. Era ele que fornecia, durante a década de 1840 e 1850 toda, o serviço de banquetes da Casa Imperial, assim como nos bailes. O cara era tão conhecido, que se de nominava sorveteiro de sua majestade D. Pedro II.
De todos produtos vendidos na confeitaria e café do Francioni, talvez os sorvetes eram os mais procurados mesmo. Você pode imaginar que na época devia ser bem complicado a aquisição e produção de gelo, já que não tinham geladeiras uma em cada cada né? Ele mesmo teve um monopolio da venda de gelo natural, assim como usava esse escasso produto pra conservar as frutas importadas que usava no seu estabelecimento.
Quando decidi procurar esse nome “Francioni” na documentação pude constatar tudo isso que o redator da nota fúnebre dele disse. O nome do italiano era a sensação das décadas de 1840 e 1850 na Côrte, estava por toda parte. Só que em 1858 pra 1859 ele some. Cheguei até a pensar que tinha morrido, pois a última referência que encontrei foi o leilão de todo material e escravos (sim, as cozinhas nessa época eram movidas por escravizados) que pertenciam à Casa Francioni.
Aparentemente ele faliu. Perdeu tudo e ficou no anonimato até essa nota fúnebre de 1885. Sua casa, na época já ocupando os números 7 e 9 da rua Direita, foi comprada pela família Carceller e continuou a fama que inclusive aparecem nas páginas de contos e romances de Machado de Assis (merece uma nota por aqui, escreverei em breve sobre eles).
Dizem que Francioni ainda tentou abrir uma fábrica de gelos artificiais na região das Laranjeiras, mas nunca conseguiu o retorno da fama que teve naquelas décadas que era sorveteiro do rei.
Falido, sem dinheiro e já velhinho com 88 anos, sempre visitava o mesmo ponto que o seu Café e Confeitaria ficava, na rua Direita n.7 e 9. Em 1885 o próprio Carceller já não existia mais, tinha sido vendido e virado Café Cruzeiro, e depois Café e Hotel do Globo. Os proprietários e garçons do local reconheceram ele em uma dessas visitas e o convidaram pra ocupar uma das mesas, onde ficava tomando café, jogando dominó e falando pra quem quisesse ouvir a sua história. O autor termina a história assim:
Aos 88 annos conservava ainda, admiravelmente, toda a lucidez de espirito. Poucos dias antes de morrer, dizia-me elle, entre duas partidas de dominó:
— O numero 7 persegue-me! Tenho sete letras no nome (Antonio)... Nasci em Setembnro de 1797… Vim para o Rio de Janeiro em 1817… Fallo sete linguas… Estabeleci-me na rua Direita n.7…
E o pobre octogenario, que mencionava ainda outras coincidencias, morreu em 7 de outubro.
Mas isso é papo pra outro texto…
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Um pouco mais sobre mim
Sou Doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reuno eles aqui.
História fascinante !