#11 | Antes do Café veio o Botequim
Ou sobre como descobri que os dois eram a mesmíssima coisa no século 18 e 19
Como vão todos? Passaram bem as festas? Por aqui tudo ótimo! Tão bem que demorei a pegar no tranco nesse ano e tirei mais duas semaninhas de férias desse espaço aqui.
Mas agora voltei. E com a mesma frequência: quinzenalmente vocês vão receber essas reflexões de um historiador tentando encontrar o rumo das pesquisas do cafezinho. Pra esse número inaugural de 2024 vou dar um recuo na baliza temporal e voltar lá pro começo do século 19. Tudo por conta de uma conversa que acabou abrindo um novo mundo nessa pesquisa.
Tudo começou com uma cerveja com o amigo Jaelson Bitran Trindade onde conversamos muito sobre os estabelecimentos de Cafés no século 19. Na ocasião ele me disse: sua pesquisa tá muito boa, mas acho que você tá focando demais no Rio de Janeiro.
Pra ele, se eu quisesse entender como os Cafés (enquanto estabelecimentos) chegaram no Brasil eu teria que abrir minha pesquisa pra outras cidades.
Aí vem o primeiro entrave: Café é um termo um tanto genérico. Pode significar tanto a bebida, quanto o grão e até a planta. Se você usa essa palavra-chave, já era, vem tudo!
Outro entrave: estabelecimentos com nome “Café” só começam a sugir na documentação no fim da década de 1830 no Rio de Janeiro, e mesmo assim eram raros. Aumentam de volume lá pela década de 1850 em diante.
Mas eu tinha uma dica de ouro: a palavra “Café” sempre foi considerada como sinônimo de “Botequim”. Por exemplo: um dos mais famosos estabelecimentos do Rio de Janeiro entre as décadas de 1840 e 1870 foi o Café do Braguinha, que também era conhecido como “Botequim da Fama do Café com Leite”. Isso também acontecia como Café Neuville, que já vi chamado de Botequim do Neuville; ou o Café do Passeio Público, que era também chamado de Botequim do Passeio.

Desde quando vi essas nomenclaturas truncadas pensava: “ah, o autor do anúncio se confundiu” ou “ah, era tudo meio confuso mesmo”. Mas decidi ir mais a fundo na semântica da palavra botequim.
Encontrei numa dissertação portuguesa intitulada “Cafés Históricos do Porto” algo que já estava aos poucos ficando claro na minha cabeça: a tradição portuguesa não distingue os dois nomes.
Era por este termo que os cafés dos nossos dias eram denominados em períodos remotos dos finais do século XVII, séculos XVIII e XIX, tendo mesmo a perdurar pela centúria de novecentos, período em que, de forma metódica, em meados do século, os botequins foram começando a ser conhecidos, exclusivamente, pela terminologia de café, nomenclatura que já ia persistindo, em parceria com o vocábulo botequim, desde o século XIX. Este facto deve-se, em parte – como veremos mais à frente –, ao facto da bebida privilegiada, que era comercializada nestes espaços e que deu origem à sua fundação, ser precisamente o café, que alcançou grande popularidade no seio dos grandes centros urbanos. Esta infusão era preparada através da moagem do grão de café que era filtrado com o acrescento da água, dando origem ao tão precioso e afamado líquido negro e amargo. (MENDES, 2012)

Pois bem, então agora tinha uma palavra-chave um pouco menos genérica que “Café” para as buscas: “Botequim”. Tasquei ela na base de dados de jornais, revistas e periódicos da Biblioteca Nacional (meu oráculo) e constatei o que foi dito no início desse texto: deveria ampliar meus horizontes.
Botequins pipocavam nos resultados de impressos aqui no Brasil em pelo menos duas cidades além do Rio de Janeiro (a saber Recife e Salvador) pelo menos desde a década de 1810. Coincidentemente, também era as duas principais cidades portuárias brasileiras da época.
Rio de Janeiro tinha ganho um importante status no século 18 por ter sido o porto de escoamento dos minérios extraídos das Minas Gerais. Mas Salvador era a antiga capital e centro administrativo da colônia portuguesa; e Recife um porto bastante movimentado por conta da sua posição estratégica na navegação das embarcações vindas da Europa.
Além disso, quando se pensa em café, não da pra deixar de lado que as primeiras plantações vieram do norte e nordeste brasileiro no século 18. O café foi introduzido na antiga capitania do Grão Pará e Maranhão em 1727 e veio “descendo”, sendo cultivado em pequenos sítios no Ceará, Pernambuco, Bahia, até chegar no Rio de Janeiro, onde virou a menina dos olhos do Império no século 19.
Os poucos textos que mencionam consumo de café dos clássicos historiadores (Caio Prado Junior, Pedro Calmon, etc.) dizem que o café sempre foi consumido nas comunidades no entorno de onde era produzido. Mas como essa questão nunca foi desenvolvida, a pergunta essencial nunca foi realmente feita: e os portugueses que vinham da metrópole tinham o costume de tomar café? Se sim, consumiam café por aqui?
Toda a questão do século 18 é que as metrópoles europeias consumidoras de café só tinham um mercado fornecedor da bebida, o Iêmen. Os países consumidores recorreram ao que o professor Rafael Bivar Marquese chama de “biopirataria” (indico demais essa entrevista dele no podcast do Atila Iamarino, inclusive, onde ele cita o termo). Ou seja, pra não depender dos árabes do porto de Moca, deram um jeito de plantar a rubiácea em suas colônias.
E, bom, se a administração portuguesa se esforçou em plantar café por aqui em 1727, é porque consumiam. Em um livro de Luís Nuno Madureira chamado “Lisboa Luxo e Distinção 1750-1830” o amigo Jaelson encontrou o seguinte: na década de 1780 o tipo de estabelecimento cafés/botequins aumentaram em Lisboa e em 1806 já eram mais de 20 estabelecimentos abertos.
Com o intercâmbio constante de portugueses entre metrópole e colônia, eu deveria encontrar algo. Pois bem: a referência mais antiga de café/botequim que encontrei nos jornais da Biblioteca Nacional foi em Salvador, em 1813:
AVISOS
Faz-se saber que no dia sábado 13 do corrente pela sete horas da noite se há de oferecer ao público da nova Casa de Pasto, café, bilhar, denominada: Flor da Bahia; sita no Caes novo Nº 3, primeiro andar, aonde se acharão todas as qualidades de comidas, massas, doces, vinhos engarrafados, serveja, e licores, tanto do Reino como da terra; espera-se acceitação geral.
Idade D’Ouro (BA). 12 mar. 1813, p.4
Depois, essas referências se intensificam na cidade do Recife, principalmente na década de 1820 e 1830. Só que, nesse período, tem uma coisa importante acontecendo no Rio de Janeiro que descompensa a balança: dezenas e dezenas de pessoas se voltando pras franjas da cidade e região serrana abrindo cafezais em sítios, chácaras e fazendas, por conta de uma demanda cada vez mais crescente de café pelo mercado internacional.
Mas eu pude entender uma coisa na documentação: nessas décadas de 1820 e 1830 os dois principais centros urbanos consumidores de café — mesmo que ainda de forma embrionária e em pequena escala — eram Recife e Rio de Janeiro.
E aí acontece uma coisa que achei intrigante quando li: Pernambuco passa a comprar café do Rio de Janeiro pra consumo. Olha esse trechinho do Diário de Pernambuco de 1836:
Vinho da Factoria do Porto em barriz e a retalho de superior qualidade, café do Rio a 200 réis a libra […]
Diario de Pernambuco (PE). 5 dez. 1836, p.4
E aí a gente pensa: importava porque Pernambuco já não produzia mais? Não. Em um jornal do mesmo ano se anunciava:
Café de Apipucos superior ao do Rio a 200 réis a libra, e em maior porção dá-se mais em conta [...]
Diario de Pernambuco (PE). 18 out. 1836, p.4
Apipucos era um antigo engenho de açúcar e hoje é bairro de Recife. Na época, produzia café. Isso me fez ficar instigado e cair de cabeça na palavra-chave “café”, mesmo que tivesse que cortar com facão o mato e só separar o que interessava.
Com isso pude constatar uma coisa importante: tinham dois preços fixados para o café brasileiro na década de 1830, Salvador e Rio de Janeiro. O café da capital da Bahia geralmente era cotado em 5$000 réis a saca, enquanto o da Corte variava entre 3$400 e 3$900. O café do Rio de Janeiro era mais barato e, talvez, por isso era preferível até por essas cidades do norte brasileiro que já buscavam café pros seus botequins.
E é aí que surge esse primeiro gigante porto do café brasileiro chamado Rio de Janeiro. Tão gigante, que ofuscou esses dois importantes centros produtores e consumidores anteriores.
Vou cortar aqui o texto pois já vai muito grande e cheio de informação. Mas esse é o primeiro número onde eu começo a explorar esse mundo dos botequins. Nos próximos devo ir mais a fundo, tentar entender como funcionava no cotidiano e como esses estabelecimentos eram entendidos pelas pessoas que frequentavam (spoiler: é diferente do que entendemos).
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Um pouco mais sobre mim
Sou Doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reuno eles aqui.