#14 | As ondas do café brasileiro (parte 1)
Um olhar diferente para periodização e momentos emblemáticos da história do consumo do café
Pra quem já leu um pouco sobre história do café já deve ter trombado com as tais “ondas do café”. O termo surgiu em texto de uma newsletter chamada The Flamekeeper: the newsletter of the Roasters Guild. Em um artigo de novembro de 2002 intitulado “Norway and Coffee”, a barista norueguesa Trish R. Skeie tenta explicar — de forma bastante livre — como ela entendia o movimento que estava passando o consumo de café naquela época.
Basicamente ela propôs que as pessoas enxergassem o café por três movimentos distintos. A primeira onda era focada no consumo do café sem distinção de qualidade e, tanto importadores quanto torrefadores e consumidores buscavam apenas pelo café; a segunda onda começou a se preocupar com a qualidade, mas também se voltou para a diversificação dos cardápios das coffee-shops que, já populares, introduziram drinks de café; já a terceira onda, aquela que a autora descrevia, importadores, torrefadores, cafeterias e consumidores passaram a ser mais exigentes com a qualidade, buscando características diferentes entre cafés, preocupando-se com a origem do café bebido, quem o produzia e como, etc.
No texto ela não desenvolve exatamente de forma clara as três ondas, mas a ideia certamente estava ali. Ela também não periodiza ou pensa historicamente as três ondas, não parece ser a preocupação da autora no texto. Nesse trecho ela deixa claro sua intenção:
Primeira onda, Segunda Onda, Terceira Onda: é assim como penso o café contemporâneo. Parecem ter três movimentos influenciando o que Erna Knutsen, uma imigrante norueguesa nos Estados Unidos, pensou por Café Especial. Cada abordagem tem seu próprio conjunto de prioridades e filosofias; cada uma contribuiu para a experiência do consumidor […]. Ocasionalmente, as três ondas se sobrepõe; e inevitavelmente uma transborda e influencia a outra. […]
(tradução minha do original em inglês)
Ou seja, a autora queria tão somente entender o que estava acontecendo naquele momento em termos de consumo do café. Quase um ensaio sociológico geracional pra entender como as pessoas buscavam o café que ela preparava.
Acontece que esse termo virou um apoio pra entendermos a história do consumo do café no mundo. Muitos textos (até acadêmicos, mesmo que não de História) o utilizam pra encaixar até mesmo a experiência brasileira de consumir café, que se difere — e muito — dos países consumidores.
As periodizações para as ondas são as mais diversas. Primeira onda começou no século 19? Ou começou na Segunda Guerra? A marca estadunidense Maxwell House (que nunca operou no Brasil) foi o principal expoente dessa onda? A segunda onda começou nos anos 1970 e o principal nome é o Starbucks (que só começou a operar no Brasil em 2006)?
O Brasil é o principal produtor de café do mundo desde 1860, além de responder pelo segundo maior mercado consumidor de café desde — pelo menos — os anos 1940 ou 1950. Seu caso é muito particular pra que a gente se limite a adaptar leituras externas de como os Estados Unidos ou a Europa bebiam, beberam e bebem café.
No geral, acredito que o uso das ondas funcionaria melhor da forma originalmente proposta por Trish Skie — um estudo geracional sem se ater a uma periodização histórica — como, por exemplo, já vi colegas como Mariana Proença e Maria Mion aplicá-lo para explicar o café hoje. No entanto, já que muitas pessoas já utilizam desse conceito para falar da História do Café, acho legal iniciar o debate de uma periodização que minimamente se adeque a nossa realidade).
Nesse texto, falarei só da primeira pois essa é uma onde de longa duração. Como venho insistido aqui, a popularização do café no Brasil é lenta e cheia de meandros. Por isso, falar só que o café se popularizou por aqui “em meados do século 19” não dá conta da complexidade que o tema exige. Vamos lá:
ONDAS DO CAFÉ NO BRASIL
PRIMEIRA ONDA
O principal foco da primeira onda foi o aumento do consumo e a busca do café como objeto socializante. Eu, particularmente, dividiria historicamente ela em três momentos distintos:
Segunda metade do Século 18 — consumo com baixa produção | O café tem como data de introdução no Brasil em 1727, vindo pela Guiana Francesa e plantado no Pará. A intenção era abastecer um crescente mercado consumidor português e que este não dependesse do principal produtor, o Iêmen. Ao mesmo tempo, portugueses que se instalavam por toda a costa traziam consigo o costume do café. Portanto o café timidamente se popularizou no entorno dos sítios e fazendas em que era produzido, assim como nas cidades portuárias (Belém, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, etc.) por onde era enviado para metrópole. Por conta da escassez e do entendimento de suas propriedades, o café por muito tempo foi vendido como medicamento em boticários (a farmácia da época); com o tempo, os botequins — termo botica no diminutivo — passou assumir o papel de congregação de pessoas para bebidas que eram tomadas não mais como remédios, mas socialmente.
VARIEDADES
A MEZA DE NOSSOS AVÓS
[...]
São inegáveis a necessidade, e vantagens da meza, uma vez que o excesso lhe não embote o prazer, e tôlha a utilidade: mas que diferença da nossa meza de hoje á meza de nossos avós! Então não se conhecia o chá irritante, nem o narcótico, se bem que saboroso, café: aquelle apenas se vendia nas boticas, como uma das muitas drogas medicinaes.
Correio Mercantil (BA). 6 jun. 1839, p.3
Primeira metade do Século 19 — consumo com alta produção | O Brasil entra pra valer como país produtor de café entre 1820 e 1830. Coincidentemente ou não, é quando o Rio de Janeiro passa a explodir no que diz respeito ao consumo: pessoas escravizadas “taboleiras” vendendo café torrado e moído pelas ruas; anúncios de africanos cativos com experiência no preparo da bebida, e muitos — muitos — espaços que anunciavam a venda da bebida (botequins, casas de pasto, hospedagens, etc.). O volume da produção na recém-criada Capital Imperial passou a abastecer não só os mercados externos, mas cidades brasileiras: Recife, Belém e até Rio Grande “importavam” café do Rio. Além disso, a palavra “Café” para definir estabelecimentos de consumo público e sociabilidade começaram a surgir.
1860 -1930 — consumo com altíssima produção | Em 1860 o Império brasileiro já respondia por metade da produção mundial, passando de longe os maiores produtores da época (Java, Cuba e Iêmen). Nessa época, São Paulo também passou a ser uma importante região produtora (e consumidora). Foi nesse período que se deu o aumento e massificação do consumo. Cafés icônicos se consolidaram, principalmente no Rio de Janeiro, onde as rodas literárias, de músicos e artistas aconteciam. Marcas de café torrado e moído começaram a surgir, como Café do Globo, Café Papagaio, Café do Amorim, Café Paraventi.
1930 - 1970 | A crise do café ocasionada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929 fez com que o governo brasileiro tivesse que “dar um jeito” nos imensos estoques de café, já que a disponibilidade do produto significava cotação baixa. Para além das famosas queimas de café, o governo por meio de órgãos federais buscou direcionar esses estoques para aumentar ainda mais o consumo. Cafés de qualidade inferior que não eram exportados eram direcionados ao mercado interno com subvenção. Assim, ao se tabelar o preço do café torrado e moído, o valor do cafezinho de bares e botequins também mantinha-se baixo. É nesse momento, possivelmente, que passamos a ser o segundo mercado consumidor, atrás apenas dos Estados Unidos.
Inclusive, foi nesse momento que surgiu o famoso “o que café ruim fica no Brasil, o bom se exporta”. Curiosamente, foi nesse momento também que surgiram as primeiras campanhas de qualidade. Ações do governo por meio de vigilância sanitária buscavam melhorar os cafés feitos em bares e botequins (inclusive com decreto com quantidade mínima de pó e água). Cafeterias modelo e campanhas de qualidade foram criadas no Rio de Janeiro e em São Paulo a partir dos anos 1940, introduzindo a ideia de preparados de café. Aqui, inclusive, já havia uma espécie de embrião para o tipo de cafeterias que surgiriam na segunda onda.
Na próxima edição concluo com os elementos chave e períodos das “Ondas” 2 e 3.
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Um pouco mais sobre mim
Sou doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reúno eles aqui.
Gostei do conteúdo diferenciado! ainda mais quando procuro pesquisas sobre a qualidade do Café no Passado