Em 2019 eu escrevi um artigo sobre os costumes do Café Árabe em São Paulo que foi publicado na Revista Faces da História da UNESP. Na época, um dos revisores sugeriu que eu incluísse o porquê dessa forma de preparo, tão antiga e tradicional, não ser vulgarizada no Brasil e sim o coado. Como sempre, busquei, busquei e busquei pessoas que já tivessem escrito sobre e isso e… nada.
Na época em que a revisão e editoração do artigo foi pedida estava no período de doutorado na França e não tinha como fazer esse desvio enorme na pesquisa. Então, no artigo, tentei responder como pude e com as fontes que tinha à mão na época. Hoje, com as informações que reuni nos últimos cinco anos, consigo aumentar um pouco essa explicação e vou tentar apresentar aqui pra vocês o que encontrei sobre.
Minha hipótese continua a mesma: nossa referência cultural no século 19 — quando o café se popularizou no Brasil — era a França. Na primeira metade daquele século, os franceses não só acreditavam que o coado era o melhor método como propagandeavam isso. Brillat-Savarin, um dos principais autores da gastronomia francesa (e lido até hoje) escreveu em 1825 o seguinte em seu tratado Physologie du Gout (Fisiologia do Gosto):
Por tempos testei diversos métodos e de todos que me propuseram até hoje e me decidi, por conhecimento de causa, àquele que chamam à la Dubelloy, que consiste derramar água fervente sobre o café em um vaso de porcelana ou prata, vazado com pequenos furos. (tradução do autor)
É importante lembrar que o método de preparo do café até meados do século 18 tinha sofrido poucas alterações daquele trazido dos (e pelos) árabes e turcos ao continente europeu. Era feito por meio de ebulição da água sem coagem e servido, em geral, por meio de samovares (também conhecidos em inglês como coffee urns).
Inventores franceses, italianos, ingleses e alemães introduziram basicamente todas as formas conhecidas atualmente de preparo de café em fins do século 18 e ao longo do século 19. Percoladores, filtros de pano, cafeteiras de sifão, prensas, até as antecessoras da “mokinha”, todas elas foram criadas e popularizadas nesse período de intensificação do consumo de café na Europa.
O tal do método a la Dubelloy que o Brillat-Savarin cita lá em cima é um desses métodos, talvez um dos primeiros que separou o pó do café do seu líquido. Era, segundo o William Uckers no All About Coffee, uma cafeteira feita de latão, ferro ou porcelana e que serviu como modelo de dispositivos de percolação para os próximos 100 anos de sua invenção. O nome refere-se — possivelmente — ao arcebispo de Paris Jean Baptiste De Belloy, que viveu entre 1709 e 1808 e (de novo, talvez!) tenha inventado esse método.

E por que eu tô falando tudo isso? Porque — possivelmente, tudo isso influenciou o modo do brasileiro beber café.
Existem fortes evidências, por exemplo, de que em alguns dos botequins mais antigos daqui — principalmente no Rio de Janeiro, Salvador e Recife — adotadom o método das coffee urns ou samovares. Eu comento sobre esses indícios na edição #12.
No entanto, o Brasil foi “invadido” pelas maneiras francesas, principalmente após a chegada da Família Real no Rio de Janeiro em 1808. Inicialmente foi uma tradução feita pelas elites e classes liberais portuguesas daquilo que absorveram da francesa; depois, pelos próprios imigrantes franceses que foram — se não numerosos — bastante presentes na urbanidade da Corte Imperial brasileira em terras fluminenses.
Um documento que deixa evidente essa questão é a circulação de livros de receitas e métodos culinários franceses pelo Rio de Janeiro, como esse anúncio publicado no Diário do Rio de Janeiro de 1836:
Em casa de Ed. Laemmert, rua da Quitanda n.139, chegou ultimamente e se vende pelo preço de 2$000: Manual du Limonadier et du confiseur; obra indispensável á todos os que quiserem fabricar doces, sorvetes e outras cousas delicadas para os usos da vida. Além das melhores receitas para preparar o café, chocolate, ponche, licores, bebidas, refrigerantes, &c &c, também contem outras para fazer Gelados por mais de 40 differentes maneiras.
Na ponte das Barcas de Vapor na Praia de D. Manoel, achão-se para vender as obras completas de Moliére.
Diario do Rio de Janeiro (RJ). 22 jul. 1836, p.1-2
Infelizmente não consegui encontrar o tal Manual du Limonadier et du confiseur, mas certamente esses métodos circularam (até de forma oral) pelos botequins, cafés e confeitarias fluminenses nas décadas seguintes.
Outro documento no qual é flagrante a influência francesa é essa tradução de matéria publicada inicialmente no New York Herald na Revista Comercial de Santos, em 1866:
“O bom café é ma bebida que não depende tanto do paiz d’onde vem, como da maneira de o fazer. Assim, a Inglaterra e os Estados Unidos estão abaixo de qualquer nação civilizada no fazer o café, e estarão sempre em atraso em quanto não cessarem de ferver o café: a fervura não extrahe a cafeína. Só quando adoptardes o systema francez, italiano, hespanhol e brasileiro de torrar o café e de preparar a bebida por cocção, será essa bebida tão boa como a que se acha no interior das mais pobres familias francezas e New York, ou nas mais pobres famílias de Paris, Madrid, Turim e Lisboa. Outra nação, sem ser de raça latina, faz sempre bom café: é a Turquia, posto que o systema turco é diverso do francez.
Mas não quero estender-me sobre a mandeira de fazer o café, porque todas vossas leitoras, que não tiverem aprendido o methodo fácil e superior da França, não se convencem senão por uma demonstração de facto.
(Do New York Herald)
Revista Commercial (SP). 19 abr. 1866, p.4
Mas vocês conseguem ver a diferença entre a Du Belloy e os coadores? William Uckers (e muitos autores depois dele) costumam dividir “percoladores” de “coadores”. Enquanto os primeiros são, em geral, de metal ou cerâmica, os segundos são de algum tipo de tecido e, posteriormente, até mesmo de papel. Possivelmente, os primeiros métodos que chegaram ao Brasil eram, como esse descrito nesse anúncio do Diário do Rio de Janeiro de 1828:
Faz sciente Angelo Tinnelli a todos os Srs. Negociantes desta Praça com quem elle tem transações, que tem dissolvido amigavelmente a sociedade que tinha e girava debaixo da firma de Tinnelli e Comp., achando-se presentemente o giro da sua casa sita na rua Direita N.34, debaixo da firma do anunciante, A. Tinnelli; e na mesma acaba de receber pelo ultimo Navio chegado de França hum grande sortimento de çapatos de homem de toda as qualidades, e pelo preço mais comodo possivel; e também tem hum coador para café, de prata de lei, que vende pelo modico preço de 200 reis cada oitava. (destaque do autor)
Diario do Rio de Janeiro (RJ). 12 set. 1828, p.3
A loja “Casa do Bule Monstro” que ficava na rua do Ouvidor n. 88, costumava anunciar cafeteiras de porcelana, vidro ou folha e coadores, também de folha. “Folha” significava “folha de flandres”, um material antecessor do alumínio e que tinha característica de ser leve e resistente à corrosão.
CASA DO BULE MONSTRO
RUA DO OUVIDOR N.88
Recebeu-se pelo ultimo navio do Havre machinas para fazer agua gazosa (chamada gajoginet), com os componentes pós. Acha-se também na mesma casa grande sortimento de lampeões para sala, francezes e ingleses, cafeteiras de porcelana, de vidro, e de folha, bules de folha e de metal, para chá, coadores de folha para café, e todos os tamanhos, machinas de vapor para chá e café, tudo por preços muito rasoaveis.
Jornal do Commercio (RJ). 16 jan. 1851, p.3
Por isso, quando nos deparamos na documentação a palavra “coadores de café”, muito provavelmente a pessoa está se referindo a esse tipo de cafeteiras feitas por processos metalúrgicos. Possivelmente esses artefatos eram destinados à cafés, botequins, confeitarias ou até mesmo casas de pessoas da alta sociedade.
Mas, obviamente, tudo circulava. A circularidade cultural com certeza fez com que o método de percolação chegasse nas casas dos brasileiros por meio do coador de pano — à imitação do que se via em botequins ou em casas de pessoas com maior poder aquisitivo. O coador de pano era um método simples, barato e que qualquer um poderia replicar.
A popularidade ainda lá atrás do coador de pano fica clara em uma anedota publicada no Correio Paulistano de 1865: o “criado” respondia para o senhor — que não entendia o porquê de seu café estar turvo — que tinha feito em uma de suas meias sujas:
ACEIO – Coas-te o café? Perguntava certo sugeiro ao criado.
- Coei, sim senhor.
- Não parece, está tão turvo. E demais a tem máo gosto.
- Pois olhe, coei-o muito bem, e por tal signal que foi por uma meia de lã.
- Por uma meia de lã! Bruto!
- Não se zangue, senhor. Não lhe estraguei as suas. Servi-me de uma das minhas meias; e até já estava suja. Tinha-a trazido já quinze dias, e então não tinha duvida que a sujasse com o café.
Correio Paulistano (SP). 27 jul. 1865, p.2
Para além do óbvio que a anedota queria passar — ou seja, o aspecto preconceituoso do autor que as classes populares não tinham asseio — fica também evidente que a opção do coador de pano já era uma grande possibilidade, inclusive para aqueles que tinham menor poder aquisitivo.
Avançando no tempo, chegamos nessa ilustração de 1908:
Acho muito perspicaz o autor do texto ter usado exatamente o termo “Brillat-Savarin indígenas” ao dizer que os brasileiros passaram a valorizar o “café coado pelo clássico saquitel de algodão cru”. Aqui, no começo do século 20, o café coado já era brasileiro, incorporado ao costume e citado como preferência nacional. Mas tudo tem origem lá atrás, nessa influência francesa.
Essa predileção pelo café coado, inclusive, faria com que a grande novidade do tal “café espresso” em máquinas italianas tivesse difícil penetração no mercado brasileiro, mesmo sendo introduzido por aqui bem cedo, na década de 1910. Mas isso é assunto pra outro texto…
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Um pouco mais sobre mim
Sou doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reúno eles aqui.
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