#22 | Frank Sinatra canta o café de Santos
Post colaborativo com @notasdoatanes, escrito pelo incrível Alessandro Atanes
A edição de hoje da newsletter é um pouco diferente, mais musical e colaborativa. O amigo, pesquisador, escritor e músico Alessandro Atanes, que mantém a newsletter Notas do Atanes (se não seguem ele, sigam lá!), me convidou para fazer um texto duplo centrado na música “Coffee Song”, gravada pela primeira vez pelo Frank Sinatra em 1946 (pra quem não conhece, dê um play ali em cima antes de começar o texto!). A ideia é a de trazer reflexões sobre essa canção de ambas as partes, um texto meu e um dele.
O primeiro texto é do Alessandro, o segundo é o meu.
Achei incrível a ideia, espero que curtam a dobradinha!
Alessandro Atanes (@notasdoatanes)
O ano é 1946. Frank Sinatra lança The Coffee Song, composição de Bob Hilliard and Dick Miles, uma crônica sobre aquele que era então o mais importante produto de exportação do Brasil, o café, interminável café, colhido aos bilhões. Assim são os primeiros versos:
Way down among Brazilians
Coffee beans grow by the billions
So they've got to find those extra cups to fill
They've got an awful lot of coffee in Brazil…Nas terras brasileiras
grãos de café crescem aos bilhões
Então eles têm que encontrar extras xícaras para encher
Eles têm café para além da conta no Brasil…
Em seguida, a letra diz que por aqui não se encontra refrigerantes, suco de tomate ou de batata e a filha de um rico foi multada por beber água e que as garotas têm perfume de café coado. Quem mora em Santos sabe que não é exagero, dependendo da direção do vento, quem anda ali pelo Centro perto das torrefações sabe como é ficar defumado pela torra dos grãos.
E a própria cidade de Santos, porto exportador, torna-se na letra uma metonímia de toda a cadeia produtiva:
No tea or tomato juice
You'll see no potato juice
The planters down in Santos all say no no no
Nem chá ou suco de tomateNem chá ou suco de tomate
Você não verá nem suco de batata
Os fazendeiros lá em Santos dizem todos não não não
É como se Santos levasse a fama de todo um território, do porto à fazenda, que, pensando em logística reversa, reúne as operações de transporte, armazenamento, colheita, cultivo e o plantio.
No poema História engraçada, do livro Café, Saulo Ramos trata dessa questão de forma crítica, anotando como cada etapa da cadeia gera cada vez mais riquezas que nunca chegam ao pobre caboclo que planta o grão na terra em que sobrevive.
Quanto mais perto do pé de café
mais fome se tem e mais pobre se é.
Ao longo do poema, ele enumera os degraus da pirâmide de riqueza que se forma a partir do pobre colono como base: o feitor, o fiscal, o administrador, o dono da terra, o corretor e, por fim, o comissário “que despacha o café para o mundo”.
Foi assim que a fortuna do Brasil
ficou nas mãos dos homens lá do mar,
dos donos dos navios e dos cais,
que bebem a riqueza do café
sem nunca terem visto cafezais!
Bibliografia: Saulo Ramos. "Café (A Poesia da Terra e das Enxadas)". Coleção Páginas Amarelas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002.
Bruno Bortoloto do Carmo
Conheço a música “Coffee Song” já faz um tempinho, mas confesso que nunca tinha pesquisado muito sobre a sua origem. Ela é de autoria de uma dupla de compositores, Bob Hilliard e Dick Miles. O primeiro foi um importante compositor da Broadway, enquanto o segundo não encontrei absolutamente nada sobre. Parece que foi o primeiro sucesso, tanto do Bob Hilliard quanto do próprio Sinatra, tendo sido um dos primeiros singles que ele gravou junto à Columbia Records, momento que a carreira dele realmente deslanchou.
Desde seu lançamento em setembro de 1946, ela ficou por doze semanas no top 10 do The Billboard Best Selling Popular Retail Records e chegou a aparecer na sexta posição do The Billboard Records Most-Played on the Air, um belo feito para o (ainda jovem) Sinatra.
É considerada uma novelty song, pois ela conta uma historinha. Nela, um (não tão) fictício Brasil é retratado como um lugar que tem tanto – mas TANTO – café (bilhões de grãos e zilhões de toneladas) que não se permitia beber nada além disso. Aqui não tinha chá nem suco de tomate (esse, de fato, não tinha tanto mesmo); até a filha de um político teria sido multada por tomar água.
Exageros à parte, nessa época – de fato – bebia-se muito café no Brasil e o Governo estava ativamente tentando aumentar o consumo por meio de campanhas e incentivos. A crise do café pós-crash da Bolsa de Nova York de 1929 fez com que o Governo Vargas buscasse dar vazão para toda produção que não poderia ser escoada pros Estados Unidos, maior consumidor mundial e principal comprador do café brasileiro.
Antes de pesquisar sobre a história dessa música eu realmente achava que tinha alguma coisa de Propaganda nela. Desde os anos 1910 que o governo brasileiro fazia acordos de divulgação do café como símbolo nacional. Isso foi ampliado com o Getúlio Vargas e o seu Departamento Nacional do Café (DNC), que investiu massivamente em propagandear o principal produto de exportação nacional à época.
Na letra, encontramos algumas partes muito curiosas, como “You can't get cherry soda /'Cause they've got to fill that quota” (Não se pode conseguir uma cherry soda/ pois precisam preencher a cota), que claramente fala sobre a necessidade do governo em escoar abundantemente o café pelo mercado nacional. Outra parte diz “No tea or tomato juice/ You'll see no potato juice / The planters down in Santos all say no no no” (nada de chá ou suco de tomate/ você não verá suco de batata (algumas versões trocam por suco de maçã)/ os fazendeiros em Santos vão dizer não, não, não); essa mostra que minimamente os autores sabiam como as coisas funcionavam e que Santos era o principal porto exportador do café. Isso era um fato presente no imaginário estadunidense? Esses autores tinham algum amigo do comércio? Algum agente do governo brasileiro encomendou e pediu que essas informações estivessem presente? Não consigo confirmar nada disso, não tem nenhuma informação, nenhum documento que leve a nenhuma dessas conclusões.
Na edição de agosto de 1949 da revista Carioca um leitor dizia ser fã do Frank Sinatra e gostava muito, entre outras músicas, da “The Coffee Song”. Isso indica que ela circulou por aqui, tendo inclusive ficado em décimo lugar na hit parade internacional da revista Scena Muda de novembro de 1946; por isso, talvez, na edição de dezembro tenham decidido divulgar sua letra:
Mas – acho eu – se fosse algo ligado à uma propaganda ativa do Governo Federal, a música teria aparecido em diversas dessas publicações, além de contar com versões brasileiras de artistas consagrados da era de ouro da rádio, o que não consegui encontrar.
Nos anos 1960, quando o Sinatra re-gravou a música pra coletânea “Ring-a-Ding-Ding” (lançado no Brasil pela Reprise Records), a revista Intervalo divulgou o LP da seguinte forma: Sinatra, como sempre, dá ‘show’ de interpretação, oferecendo-nos ainda como lambujem a promoção grátis de nosso café, com a melodia “The Coffee Song”, que o nosso Instituto do Café lamentavelmente ainda não soube aproveitar”. Em outra edição, insistiram:
Parece mentira, mas até agora, o Instituto do Café que gasta tanto dinheiro na promoção de nosso café, não tomou conhecimento da fabulosa e gratuita propaganda que Frank Sinatra está fazendo do produto que mais fatura em nossa balança comercial, ao gravar a melodia “The Coffee Song”, que consta do LP editado entre nós pela marca “Reprise” com o título “Ring-a-Ding[-Ding]”, e que constituiu um completo e espontâneo elogio ao café brasileiro. Frise-se que, se Sinatra fôsse consultado para fazer tal promoção da preciosa rubiácea, talvez o nosso instituto não tivesse dinheiro suficiente para patrocinar tal empreendimento…
Intervalo (RJ). Ano I, N.12, 1963, p.60. Acervo Biblioteca Nacional.
De qualquer forma, nos Estados Unidos a música parece ter sido um sucesso. Além dessa regravação do Sinatra em 1963, muitos outros artistas a gravaram: Louis Prima and his Orchestra, Sam Cooke, Eydie Gormé, Rosemary Clooney, Doris Day… todos com toda cara daquele fox-trot latino feat samba/bossa que foi famosíssimo nos Estados Unidos nos anos 1940. Talvez as duas versões mais inusitadas que trombei foi uma da alemã Hildegard Knef nos anos 1970 e da banda de rock alternativo Soul Coughing nos anos 1990.
Também nos anos 1990 o Muppets Show fez uma versão. Segundo a Muppet Wiki, a música foi ao ar no Episódio 203 do Muppets Tonight. Recomendo escutar todas as versões que listei, mas se tivesse que escolher uma, certamente ficaria com essa:
The Coffee Song - By The Muppets
Por fim, mas não menos importante: Frank Sinatra veio ao Brasil em 1980 para cinco shows enormes no Maracanã, Rio de Janeiro; a abertura do show foi nada menos que The Coffee Song. Deixo a gravação de um dos dias aqui embaixo, mas vale ler a história desses shows em uma matéria da BBC de 2020.
Frank Sinatra - The Coffee Song (Live in Rio de Janeiro-Brazil 1980)