[Se você caiu nesse texto de paraquedas e quiser conhecer um pouco do porquê desses escritos, leia esse texto de boas vindas]
Recentemente, já enquanto reunia informações pra essa pesquisa que venho fazendo sobre história de cafés e cafeterias no Brasil, topei com um conto publicado no periódico Jornal das Famílias de 1873 intitulado “Decadência de dois grandes homens” assinado pelo pseudônimo de MAX.
Comecei lendo justamente porque a cena inicial se passava no Café Carceller, que eu tava mapeando na época, mas acabei devorando as 12 páginas dele. Começava com o encontro casual de dois desconhecidos num café que termina num grande delírio de Césares, Brutus & Cia Romana Limitada. Fiquei doido pra descobrir quem era esse tal de MAX e — bam! — era Machadão publicando com pseudônimo.
Não vou colocar aqui o conto inteiro (apesar de indicar fortemente que todos leiam), mas vou colocar os três primeiros parágrafos pra poder falar um pouco desse tal de Café Carceller.
Os antigos frequentadores do Café Carceller hão de recordar-se de um velho que ali ia todas as manhãs às oito horas, almoçava, lia os jornais, fumava um charuto, dormia cerca de meia hora e saía. Estando de passagem no Rio de Janeiro, aonde viera para tratar questões políticas com os ministros, atirei-me ao prazer de estudar todos os originais que encontrava, e não tenho dúvida em confessar que até então só tinha encontrado cópias. O velho apareceu a tempo; tratei de analisar o tipo.
Era meu costume - costume das montanhas mineiras - acordar cedo e almoçar cedo. Ia fazê-lo ao Carceller, justamente à hora do velho, dos empregados públicos e dos escreventes de cartório. Sentava-me à mesa que enfrentava com a do velho, e que era a penúltima do lado esquerdo contando do fundo para a rua. Era ele homem de seus cinquenta anos, barbas brancas, olhos encovados, cor amarela, algum abdômen, mãos ossudas e compridas. Comia vagarosamente algumas fatias de pão-de-ló e uma chávena de chocolate. Durante o almoço não lia; mas apenas acabado o chocolate, acendia um charuto que tirava do bolso, que era sempre do mesmo tamanho, e que no fim de certo tempo tinha a virtude de o fazer adormecer e deixar cair das mãos o jornal que estivesse lendo. Encostava então a cabeça à parede, e dormia plácido e risonho como se algum sonho agradável lhe estivesse dançando no espírito; às vezes abria os olhos, contemplava o vácuo, e continuava a dormir tranquilamente.
Indaguei do caixeiro quem era aquele freguês.
- Não sei - respondeu -; almoça aqui há quatro anos, todos os dias, à mesma hora.
- Tem ele por aqui algum conhecido?
- Nenhum; aparece só e retira-se só.
Esse personagem, meio flaneur/meio antropólogo que o Machado coloca como narrador descreve perfeitamente o movimento padrão desse tipo de estabelecimento que, nas décadas de 1860 e 1870, já estavam faziam parte do cotidiano do Rio de Janeiro.
Perceba que a descrição da rotina do homem era a seguinte: almoçar religiosamente às 8 horas da manhã, fumar um charuto enquanto lia um jornal e tirar uma pestana de meia horinha ali na cadeira mesmo. O almoço nessa época era o que a gente entende hoje por café da manhã; já ouviram falar que em Portugal chamam de “pequeno almoço”? Então, essa era a refeição que quebrava o jejum, servida geralmente entre às 5 às 10 da manhã quando os estabelecimentos abriam. Depois vinha a janta à tarde (geralmente até às 14 horas da tarde) e depois a ceia pouco antes de se deitar (geralmente antes das 20 horas da noite).
Esse era o padrão das refeições no século 19, que só seria alterado bem aos poucos com o incremento da iluminação urbana e da vida noturna urbana, coisa que o café teve muito a ver. Se você leu os textos anteriores deve ter visto que digo sempre que o brasileiro não tinha costume o de beber café e que esse costume era mais dos europeus. O que talvez tenha explicado pela metade é que o tal do “elemento nacional” até que bebia, sim, o café; só não bebia toda hora. O costume era beber com leite, geralmente pela manhã pra quebrar o jejum e acompanhado de um pão ou qualquer coisa leve (soa familiar?). Os Cafés (ou Cafés-Botequim) geralmente serviam isso pela manhã como “almoço”.
O português “Braguinha”, dono do , talvez um dos mais populares botequins-café que existiram nesse período, afixava dessa forma os preços correntes em 1856:
REFRIGERIOS PARA ALMOÇOS E CEIAS, A SABER:
De café com leite. . . . . . . . . . 240 réis
De café simples . . . . . . . . . . . 200 réis
De chá do melhor que ha. . . . . 240 réis
De chá preto . . . . . . . . . . . . . . . 240 réis
De chá matte . . . . . . . . . . . . . . . 200 réis
Uma chavena de café com leite. . 60 réis
Uma dita simples. . . . . . . . . . . . . . 40 réis
Rio, 7 de junho de 1856. – José de Souza e Silva Braga.
Correio da Tarde (RJ). 06 mai. 1856, p.3
Basicamente, você podia pedir uma refeição completa com jarra de café, chá ou chocolate por 240-200 réis, uma xícara de café com leite pois 60 réis ou uma xicarazinha de café por 40 réis. Pra vocês terem noção, a medida mínima de valor nessa época era o vintém (20 réis) ou “cobre/cobrinho”, como eles diziam. Então, 40-60 réis era algo realmente muito barato; coisa, assim, de centavos que qualquer um podia ter perdido no bolso.
Mas, óbvio, existia uma grande diferença entre o botequim da Fama do Braguinha (que Machado muito provavelmente frequentou, mas isso é assunto pra outro texto) e o Carceller.
O Carceller era, antes de mais nada, uma das principais Confeitarias da rua do Ouvidor. Fundada pelo fluminense José Thomaz Carceller por volta de 1830 (a documentação diz que ele era nascido no Rio de Janeiro, mas certeza era filho de algum imigrante francês ou espanhol). Ela rivalizava com os principais estabelecimentos do gênero; nomes como Deroche, Castagnier, Castellões e, inclusive, a Confeitaria de Antônio Francioni (lembra dele? falei sobre na edição #1). Pra se ter uma ideia, a Confeitaria Castellões se tornaria o que hoje conhecemos por Confeitaria Colombo.
Os anos 1840 e 1850 foram marcados por uma febre das confeitarias. Pessoas das elites e das classes médias saíam em verdadeiras “procissões” pela rua do Ouvidor nos dias santos, como a Semana Santa ou o Natal, percorrendo as vitrines enfeitadas desses estabelecimentos com caixinhas de confeitos de amêndoas feitas para presentes. Era mais ou menos isso aqui:
A SEMANA SANTA
Para um grande numero, porém, essas festas são apenas um pretexto para o passeio e a reunião. A visitação das igrejas anda unida á visitação das lojas de confeiteiros; na noite de quinta-feira as casas de Deroche, Carceller, Francioni e Castellões, cobrião-se de sedas, de velludos e de assucar, e espalhavão profusamente espelhos, lustres, fióres, caixinhas douradas, de velludo, de seda; cada uma dellas era um templo elegante consagrado á gulodice; cada uma se esforçava por apresentar um aspecto mais risonho que convidasse o visitante.
Diario do Rio de Janeiro (RJ). 12 abr. 1857, p.1.
Em meio essa sensação toda José Thomaz morreu em 1854, aos 29 anos (terríveis anos da febre amarela; a documentação diz que ele morreu de “febre perniciosa”). Antes de morrer, Carceller não só tinha montado uma das principais confeitarias do Rio como, também, montou uma operação familiar de importação de bens da Europa, principalmente da França. Essa operação envolveu o casamento de suas duas filhas com seus caixeiros: o português João Gonçalves Guimarães ficou como gerente da firma após sua morte, dividindo a sociedade com sua sogra Thomazia Michelina; já seu outro genro, o francês Henry Fournier, foi morar em Paris e formava um elo perfeito de abastecimento de gêneros europeus pra sua casa.
Foi inclusive nessa fase de sociedade “Viúva Carceller & Guimarães” que a confeitaria cresceu ainda mais. Com a falência de Antônio Francioni, eles trataram de assumir o ponto do italiano na rua Direita ns. 7 e 9, se tornando o primeiro estabelecimento do gênero da época a ter uma filial. Ali, fizeram uma grande obra em frente à calçada da confeitaria e café, instalando bancos e plantando árvores para que as pessoas ficassem em frente o local, que ficou conhecido como “Boulevard Carceller”.
O ambiente do Café Carceller era bem parecido com qualquer estabelecimento do tipo da época e, apesar poucas referências imagéticas internas (só consegui localizar uma ilustração, que reproduzo abaixo), esses locais não costumavam mudar muito entre si.
Eram compostos basicamente de um grande balcão de madeira (que nessa época ainda não serviam para beber o cafézinho de pé, apressadamente); armários para acondicionamento de garrafas de bebidas, cadeiras com tampo de mármore e pés de ferro (alguns com quatro pés, outras só um central em formato de ‘pé de galinha’); grandes espelhos com molduras cheias de rococó e, por vezes, quadros de pinturas a óleo; cadeiras de madeira com assento de palhinha (os mais chiques, como Carceller certamente importavam as austríacas Thonet); e garçons (que na época chamavam-se caixeiros) com ‘chocolateiras’ em punho cheias de café e leite, pois era o que mais serviam visto ser o mais barato do cardápio. Os cafés simples ou com leite, por costume, vinham acompanhados de um copo d’água.
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Um pouco mais sobre mim
Sou Doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reuno eles aqui.