#5 | Eugène-Maurice Dangremont, o violinista franco-brasileiro
Ou sobre o que um garoto prodígio da música brasileira tem a ver com os primeiros Cafés brasileiros
Mais uma vez, deixo como sugestão o play nessa música para embalar o texto. É um trecho da ópera de Jacques Offenbach, “Orphée Aux Enfers”. Lá embaixo eu explico!
Novembro de 1874. Um jovem de apenas oito anos causou um furor na Corte Imperial do Rio de Janeiro com seu violino. Um espetáculo foi feito como em seu benefício no Theatro Lyrico Fluminense, no qual toda arrecadação de bilheteria ia pro beneficiado. Nele, o público atirou-lhe flores e bouquets, mimosear-o com uma medalha de ouro a commissão representante dos professores de musica desta Côrte. Na mesma época, diversos jornais comparavam o som da rabeca do jovem Dangremont à de grandes musicistas europeus, chegando a dizê-lo “Paganini reencarnado”.
Appareceu ha dias no theatro Lyrico uma promessa de homem mas uma realisação de artista: o menino Dangremont – assim o chamão: o genio das faxas – o chamaremos nós.
Esse menino é um portento, sua rabeca falla: essa rabeca é uma fada, seus accordes encanta.
Ouvimol-o e vimol-o.
Para nós não resta duvida acerca da transmigração das almas – Paganini vive: o menino Dangremont é Paganini.
A Familia Maçonica (RJ). 16 nov. 1874, p.1.
Eugène-Maurice Dangremont nasceu em terras brasileiras, possivelmente no Rio de Janeiro, em 1866. Era filho de pais franceses: Eulalie Dangremont e Charles Dangremont.
Abro uma aspas logo no comecinho: como todos os imigrantes de países não lusófonos, seus nomes constantemente eram aportuguesados, sendo comum vê-los chamados também de Eugênio Maurício, Eulália e Carlos Dangremont. Como esse nominho era meio complicado pros brasileiros, também não era raro de ver na documentação o nome da família como Dengremont e outras variantes.
Dengremont ou Dangremont, Eugênio Maurício (ou Eugène-Maurice) foi reconhecido como um grande violinista logo cedo e bem novo. Mas o que a história desse rapazote prodígio (uma criança, pros nossos padrões, vamos convir) tem a ver com os Cafés do do Rio de Janeiro dessa época?
Charles, seu pai, migrou para o Rio de Janeiro por volta de 1848. Seu primeiro registro na documentação foi um ano depois, sendo anunciado como dono de um café e casa de bilhar na rua dos Ourives n. 63. Esse negocio pertencia antes a José Vicente Castagnier, outro francês que já estava no Brasil há bem mais tempo que Dangremont e tinha um estabelecimento relativamente conhecido no número ao lado: a Confeitaria Braço de Ouro.
Era um movimento migratório relativamente comum, principalmente em outras comunidades mais numerosas, como a portuguesa. Um integrante já estabelecido recebia outro, parente ou conterrâneo, e acolhia-o como gerente ou caixeiro de seu comércio. Charles, pelo visto, foi gerente desse bilhar e café ao lado da Confeitaria Braço de Ouro e, um tempo depois, assumiu-a como proprietário.
Mais tarde, na década de 1850, Charles apareceria ainda como dono ou gerente do Hotel Renaissance, localizado na rua da Assembleia. Mas seu grande estabelecimento surgiu em 1859 com o nome de Grande Café do Império. O Café, além de comércio de comidas leves e venda de bebidas alcóolicas e o próprio cafezinho, também contava com outra atração: os bilhares. Logo na inauguração foram colocadas 15 mesas, mas esse número cresceria para 18 em poucos anos.
Os Cafés nasceram, antes de mais nada, como espaço de divertimento das elites das crescentes classes médias urbanas da Corte. Com o recolhimento como regra e o espaço da rua como sendo do trabalho — logo, nessa época, de negros escravizados — esses espaços foram aos poucos ocupados por imigrantes que tinham referência europeia de reuniões em estabelecimentos de café para convívio e troca de ideias.
Para atrair pessoas para que passassem mais tempo nesses locais, colocavam diversos jornais pelas mesinhas de mármore, anexavam charutarias ao estabelecimento e incentivavam a prática de jogos, como dominó (lembra o velhinho Francioni do #1?), xadrez e damas. Mas bilhar, sem dúvidas, foi a grande vedete desse período. Todo Café possuía pelo menos uma ou duas mesas, fossem próprias ou em outro andar no sobrado mas administradas por outro proprietário.
Aparentemente, o investimento para se ter um bilhar era bastante rentável para que Charles instalasse 15 mesas de uma só vez no espaço de seu Café. Só para comprar essas mesas Dangremont gastou 16:500$000 contos de réis, o equivalente para montar uma fazenda de café de médio porte (que à época dependia quase que exclusivamente da mão-de-obra de pessoas escravizadas).
Mas o pai de Eugène-Maurice não parou com o Grande Café Imperial. Foi além e investiu também no Teatro São Pedro, comprando junto com o também francês Charles (ou Carlos) Duccomant todos os camarotes e tornando-se os dois acionistas majoritários do espaço. Sua inserção no teatro não estava dissociada do mundo dos Cafés. Naquela época, a febre das operas bouffes parisienses atingiu a Corte brasileira em cheio. Diversos estabelecimentos ligados ao teatro, principalmente à essas famosas operetas cômicas francesas se tornaram mania no mundinho cortesão fluminense.
Teatro e Cafés se tornaram uma só coisa. Primeiro multiplicaram-se os estabelecimentos próximos aos espaços de apresentação mais famosos. Depois, apresentações passaram também a acontecer no interior dos Cafés: eram os cafés-concerto ou cafés-cantantes. Esses locais misturavam mesas com o consumo de bebidas com apresentações, danças de quadrilha, jogos e outros divertimentos.
Os Cafés eram vistos de forma ambígua. Com o consumo do café ampliando os hábitos noturnos da sociedade cortesã fluminense, via-se a frequência de sua clientela como tanto um avanço civilizatório como uma depravação boêmia dos costumes cristãos. Além disso, por ser um local eminentemente masculino, qualquer mulher que o frequentasse não era visto com bons olhos.
Uma das músicas mais famosas desse período, parte da ópera bouffe “Orphée Aux Enfers”. Você deve conhecer o trecho a seguir, bem presente no imaginário dos cabarés e cafés parisienses:
Esse tipo de divertimento, com clientela bastante elástica das elites e classes médias urbanas, era duramente criticado pela sociedade conservadora e cristã da época.
Ide ao Alcazar, tablado de obscenidade grosseira e estúpida, decorado com o pomposo título do Theatro Lyrico Francez, e frequentado por famílias brasileiras! Dizei: é possível que uma sociedade christã e civilisada desça mais baixo?
Homens de todas as idades e condições sociaes ahi se se entretêm nas mais vergonhosa familiaridade com as prostitutas.
Negociantes, empregados públicos, deputados e senadores, pais de família, na maior parte, dão este triste espetáculo de depravação moral
Essa dubiedade do ambiente do café e da música, entre o culto e o impróprio, era onde Dangremont (tanto pai quanto, depois, o filho) se inseriam. Música e os espaços dos Cafés combinavam-se como uma busca de refinamento da burguesia cortesã fluminense. Na verdade, o próprio espaço do Café caminhava numa linha tênue entre culto e vulgar. Na chamada do seu próprio Café, Charles mandou dizer o seguinte:
GRANDE CAFÉ O IMPÉRIO
[…]
Em tempos que não vão longe estavão tiradas as inquirições VITAE ET MORIBUS do individuo de quem se dissesse – É HOMEM DE BOTEQUIM; mas é que então taes casas só podião receber as espumas da sociedade fluminense. Actualmente a cidade do Rio de Janeiro póde offerecer ao nacional e ao estrangeiro mais caprichoso um logar de honesto repouso e passatempo, que não receia comparações com os mais famosos cafés de Paris, de Turim e de Napoles, nem com as tavernas de Londres.
Correio Mercantil (RJ). 20 nov. 1859, p.3.
Feito o contexto, voltemos ao filho:
Em 1863, Charles apareceu nos jornais como tesoureiro na Sociedade Musical de Orquestra Campesina do Rio de Janeiro. Após do nascimento de seu filho em 1866, Eugène-Maurice muito provavelmente cresceu nesses espaços e foi logo influenciado por seu pai a aprender um instrumento e que, impressionantemente, se destacou muito cedo. Ser músico poderia ser um elemento de distinção, ainda mais um músico que tocasse para plateias das elites do Rio de Janeiro e, quem sabe, das principais capitais europeias.
E foi o que aconteceu: o filho de Charles Dangremont seguiu caminho diferente dos Cafés que se transformavam cada dia mais em divertimentos populares. Suas apresentações eram sempre destinadas à alta sociedade fluminense e, em pouquíssimo tempo, Eugène-Maurice foi levado ao exterior para estudar seu instrumento.
Com 14 anos, o jovem violinista já fazia turnês pela Europa com suas apresentações que, segundo os jornais relatavam, era sempre negociado com seu pai. Charles teria, então, largado seus negócios de Café e Teatro no Brasil para agenciar o filho. Em matéria de 1881 dizia-se que o jovem violinista tinha fechado cinquenta concertos na temporada.
CARTAS AMERICANAS
[...]
Resta-me-hia agora fallar dos grandes concertos e da opera italiana. Esta ultima só abre se a 17 de outubro, e o primeiro concerto da estação não será antes do dia 15, e isto se Dangremont aqui chegar. Reservo-me, pois, para outra vez. O pai de Dangremont tem procurado quebrar contracto que fez com o gerente Hermann, que a seu turno comprometteu os serviços do menino com mais de cincoenta concertos n’esta temporada. Se Dangremont não vier de Pariz o transtorno será sério. Do outro lado ninguem sabe que fim levou Hermann.
[...]
Gazeta de Notícias (RJ). 03 dez. 1881, p.1.
Eugène-Maurice tocou em diversos lugares da Europa. Paris, Londres, Madrid, Lisboa, Viena, Berlim, Estocolmo, Copenhague… seus públicos incluíam os reis da Dinamarca, da Suécia, o Imperador e a Imperatriz da Alemanha, a rainha Sofia de Wutemberg, o príncipe de Saxe do Reino Unido, enfim! O rapaz rodou e bastante os palcos europeus.Enquanto isso, as matérias sobre Eugène-Maurice rareavam na mídia brasileira pois o garoto se apresentou poucas vezes novamente em terras brasileiras.
Entretanto, não deixaram de noticiar sua morte prematura. Em 1893, aos 27 anos, o jovem violinista morreu de tuberculose em Montevidéu, em meio a uma de suas turnês. Muitos anos depois, Charles Dangremont (que desapareceria totalmente das páginas de jornais brasileiros) seria acusado de ser o motivo da morte prematura do rapaz Dangremont, pois teria sido obrigado a estudar sem cessar pelos pais, até contrair tuberculose.
Eugène-Maurice foi também duramente criticado pela crítica musical brasileira após sua morte. A revista “O Álbum” no ano de sua morte, em 1893, dizia que o Brasil nada perdia porque Dangremont – Deus lhe perdôe! – não se considerava brasileiro. No entanto, em entrevista ao periódico francês Figaro em 1880, quando perguntado sobre sua nacionalidade, o jovem teria dito o seguinte: Antes de deixar a minha patria eu era brasileiro, sou tambem brasileiro aqui em Pariz, e sê-lo-ehi por toda parte e sempre.
Levanto essa última questão por motivos de ter encontrado fotos do jovem Eugène-Maurice antes de falecer. Saber pelos documentos que era filho de franceses é diferente de pensar como uma pessoa é lida, etnicamente falando. Na primeira imagem do início do texto — uma gravura — Dangremont filho parecia um jovem branco. Nesta outra, já teria minhas dúvidas como era recebido nos círculos caucasianos europeus.
De uma forma ou de outra, a vida de Eugène-Maurice Dangremont parece ter sido atribulada do começo ao fim. Com tantas críticas no Brasil aos músicos populares e às mulheres cantoras e dançarinas com coxas provocadoras (mundo que poderia ter integrado se aqui tivesse permanecido), o violinista franco-tupiniquim teve por destino o abuso de sua genialidade que era aplaudido a cada cidade mundo afora pela alta sociedade europeia.
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Um pouco mais sobre mim
Sou Doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reuno eles aqui.