#12 | Por dentro do Botequim
Sobre como eram os primeiros espaços de consumo de café no início do sec. 19 no Brasil
O tema do texto de hoje é arquitetura. Ou não exatamente. A ideia é dar uma bagunçada na imagem que temos desses cafés e botequins do século 19 (se você não sabe a razão de estar colocando “café” e “botequim” como sinônimos, volte no número anterior). Digo isso por mim, inclusive, porque sempre depois de tanto tempo estudando essa joça fixou na minha cabeça espaços com cadeirinhas de madeira do estilo austríaco “thonet”, mesas com tampo de mármore e pé de ferro que cabiam no máximo quatro pessoas, grandes espelhos e uma ornamentação que poderia variar com a época: romântica, art noveau, art déco, modernista, etc…
Mas uma matéria de 1923 da Revista da Semana sobre o ambiente interno dos Cafés no século 19 já tinha me dado a letra sobre essas mudanças que poderiam ser radicais, conforme voltássemos mais no tempo:
O CARCELLER
Lemos que o chão era coberto de grosso encerado de ramagens e o autor em nossos dias observava “não o critiquem os novos que nestes dias de opulencia e elegancia não vêem levantar-se um salão restaurante igual ao do Carceller de 1860; poucos annos antes os restaurantes de Paris, salvo o Café Anglais e o Café Riche, não tinham tapetes, mas soalhos encerados e alguns, leiam bem, cobertos apenas de areia fina.
Revista da Semana (RJ). 7 abr. 1923, p.14.
Imagine só você entrar num ambiente coberto — propositalmente — de areia. Numa época em que o calçamento das ruas era feito pensando somente naquelas onde tinha maior movimentação de carroças, pra facilitar o rasgar das rodas pela cidade, o resto delas basicamente feita de terra (ou areia fina, já que estamos falando de Rio de Janeiro, aqui). Quando chovia, as ruas viravam um grande lamaçal, então espalhar areia fina pelo salão talvez fosse uma ideia eficaz do que um capacho ou ferro pra limpar as botas.
Mas a construção desse ambiente interno “novo” continuou conforme fui avançando na leitura da documentação. No Diário do Rio de Janeiro de 29 janeiro de 1830 aparecia o seguinte anúncio:
Vende-se no largo da Lapa N. 9, na nova fabrica de refinar açúcar, duas bancas grandes com pedras, e dous bancos também grandes, tudo próprio para botequim.
Fiquei coçando a cabeça. Bancos? Pra botequim? E as cadeiras? Fui adiante. Lendo a documentação, em 24 de fevereiro de 1831 no Jornal do Comércio me aparece esse anúncio:
Quem quiser comprar quatro bancos que tem 9 a 10 palmos de comprido, e huma mesa do mesmo comprimento, próprios para botequim, ou casa de pasto; procure na Praia de D. Manoel n.78, que se dão por preço muito commodo.
De novo o tal do banco, e agora com especificação de tamanho. Ora essa, um banco e mesa de 9 a 10 metros de comprimento dá mais de 2 metros. Então os botequins tinham, nessa época, grandes mesas de madeira com bancos. Uma imagem mais clara ia se formando na minha cabeça.
Mas aí a peça final do quebra-cabeças apareceu em um Diário do Rio de Janeiro de 3 de abril de 1835:
Quem quiser comprar hum coxe novo, grande, de tomar banhos, que leva para mais de 12 barris d’agoa, vá a rua do Sabão n.399, que ahi se dirá quem tem: na mesma casa se acha huma urna de botar café sobre huma meza que guarnece de café para mais de 25 pessoas.
Numa primeira lida li “urna” e pensei que fosse algo pra guardar o pó de café, um depósito ou algo como uma caixa. Aí me lembrei das ilustrações dos Cafés-Tavernas europeus da Inglaterra e França do século 17 e 18.
No fim do séc. 18 eram pouquíssimas os aparatos pra se beber café. O modo árabe/turco não coado dominava. Na Europa, os Cafés costumavam ter grandes caldeirões ou urnas onde se colocava o pó e fervia a água. Esse tipo de “urna” era deixada nas lareiras para que o café tanto fosse preparado quanto permanecesse quente (além de, é claro, aquecer o próprio ambiente). Com o café pronto, poderia ser usado de duas formas: ou se abria a torneira e abastecia os recipientes para que uma pessoa a servisse nas mesas, ou colocava-se na própria mesa para que os clientes se servissem.
Essas urnas poderiam ter modelos super simples como o da ilustração (praticamente um caldeirão) que ficavam em tavernas/bodegas/botequins por toda Europa, até residências da alta sociedade. E, lógico que não seu uso não era só pra café, mas pra todas as bebidas coloniais, como o chá e o chocolate.
Agora vem comigo numa outra imagem de Café/Taverna do século 16: mesma lareira, mas repararam na mesa? O banco e mesa longa de madeira? Pois é, aí que foi o clique: essa devia ser a referência de ambiente interno dos primeiros botequins do Rio de Janeiro, Recife e Salvador lá nos anos 1810-1840.
Os botequins, tavernas e cafés locais da socialização, do encontro, da informação. Quase como um jornal lido em voz alta: fulano precisa de algo; ciclano perdeu um relógio de bolso; cadê beltrano? Tá me devendo cem mil réis.
Mas esse é um assunto pra próxima edição pois essa já vai longe.
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Um pouco mais sobre mim
Sou Doutor em História pela PUC-SP e defendi minha tese em 2022. Também sou músico nas horas vagas e fiz um disco que é quase uma trilha-sonora pra Santos, minha cidade natal. Se quiser ler meus textos acadêmicos, reuno eles aqui.